Porque escrevi um livro que resume e simplifica as exigências da Segurança Social, hoje presente em mais de duas mil instituições, carrego também uma responsabilidade:
Dizer que estas exigências são todas ilegais.
Disse ilegais? É mais grave: são mesmo inconstitucionais.
Os requisitos exigidos pela Segurança Social impedem que uma Instituição decida quantas pessoas contratar (ou que perfil de pessoas), que deveres e direitos têm as suas contrapartes no serviço, que objetivos prosseguir com as suas respostas sociais, que documentos afixar na parede e, até mesmo, os contratos que devem celebrar (um regulamento interno e um contrato de prestação de serviços), entre várias outras restrições à sua autonomia, permitindo a intervenção sistemática por parte do Estado.
A Constituição prevê como direito (liberdade) fundamental, a liberdade de associação, estabelecendo que estas “prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas” (46.º/2 CRP).
Como direito fundamental estamos diante de um direito sujeito à proteção mais elevada do nosso ordenamento jurídico. Incluindo com direito constitucional de resistência contra intervenções que o restrinjam.
Claro que não faltará quem diga: mas o direito à segurança social justifica a restrição daquele outro. Não justifica não: a liberdade de associação tem valor superior, não pode ser objeto de restrição (sobretudo nunca com o nível que hoje se vê), com base numa qualquer concretização de segurança social.
E a seguir diriam: bom, sendo assim não se pode ter instituições tão livres, devíamos acabar com as IPSS nesta área. A resposta é também negativa: o artigo que prevê o direito à segurança social, estabelece que as IPSS fazem obrigatoriamente parte da concretização desse direito.
A mensagem da Constituição é simples: a segurança social alcança-se, obrigatoriamente, com a atuação de Instituições Particulares que estão constitucionalmente protegidas de quaisquer intervenções do Estado nas suas atividades.
A Lei seguiu a Constituição: não há interferência do Estado na gestão das IPSS.
A Lei de Bases da Economia Social – lei de valor reforçado (isto é: tem de ser respeitada pelas outras) – consagra, para as IPSS, o princípio da “gestão autónoma e independente das autoridades públicas e de quaisquer outras entidades exteriores à economia social” (5.º/f) LBES).
Também o Estatuto das IPSS, enquanto Decreto-Lei, segue a Constituição e esta Lei de Bases, sublinhando que as IPSS “exercem as suas atividades por direito próprio e inspiradas no respetivo quadro axiológico” e que “estabelecem livremente a sua organização interna” (3.º/1 e 2 EIPSS). Mas aqui fomos mais longe, não fosse o Estado deixar-se levar por uma qualquer ideia de superioridade económica (ou de abuso de posição dominante), estabelece-se mesmo que “o apoio do Estado não pode constituir limitação ao direito de livre atuação das instituições” (4.º/4 EIPSS).
Então quando pode o Instituto da Segurança Social sancionar ou intervir nas IPSS?
Quando estejam em causa bens de valor constitucional equivalente. Designadamente a vida ou saúde dos utentes que estas servem, por exemplo. E pode fazê-lo: estão previstas sanções tão eficazes como o encerramento do estabelecimento.
E seria esta a missão dos inspetores do Departamento de Fiscalização do Instituto da Segurança Social, entretanto transformada em algo que não consigo sequer descrever, nem os próprios.
Repare-se bem. Se a preocupação deveria ser bens tão relevantes como a saúde e a vida dos utentes, deixando às IPSS a autonomia de se gerirem e gerirem os seus serviços, o que devíamos encontrar era uma Segurança Social feliz e motivada por contribuir para um sistema de cooperação que, na larga maioria dos dias, estaria só a confirmar que está tudo bem. O que é que encontramos? Uma Segurança Social a exigir coisas tão inacreditáveis como uma lista da legislação aplicável nos regulamentos internos (que nem é requisito legal sequer); e, do outro lado, dirigentes e diretores que, confrontados com estas exigências, se esforçam para se concentrar no que realmente interessa.
Então as portarias que regulamentam respostas sociais são ilegais?
Não. Só não são aplicáveis a IPSS.
Nada impede que se apliquem a entidades ou pessoas distintas, designadamente aquelas que prosseguem estas atividades de forma empresarial.
É quando os requisitos das portarias se transformam em exigências de cumprimento para as IPSS que estes se tornam ilegais e inconstitucionais.
Quando escrevemos o nosso livro tivemos o cuidado de o intitular como “guia das exigências” em vez de “guia dos requisitos”. Quando se exige o cumprimento de um requisito que não existe, ficamos só com a exigência.
O poder de criar portarias corresponde a poder regulamentar do Governo. Está, naturalmente, vinculado às normas de valor superior e à permissão normativa que autoriza o seu autor a regulamentar. O que nos diz essa permissão normativa é o seguinte: “as condições técnicas de instalação e funcionamento dos estabelecimentos são as regulamentadas em diplomas específicos e em instrumentos regulamentares aprovados pelo membro do Governo responsável pelas áreas do trabalho e da solidariedade social” (art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de março).
Esta norma permite a regulamentação de estabelecimentos de IPSS? Não. E podia? Não. Então pode ser interpretada no sentido de o permitir? Evidentemente que não.
Quem considerar que não podendo regulamentar por portaria a atividade no estabelecimento de uma IPSS se deve então impedir as IPSS de desenvolver esses serviços está a violar o direito à segurança social, que exige que estas instituições participem na sua concretização de forma autónoma.
Da mesma forma, quando o Governo introduz no protocolo “Compromisso da Cooperação” exigências de funcionamento enquanto condição para pagamento da comparticipação financeira, viola também estes direitos. É uma forma de regulamentação indireta: não obriga as Instituições a cumprir as exigências diretamente, mas faz depender a sua existência (por via do pagamento) do cumprimento daqueles requisitos. Para além de violar a habilitação normativa (que apenas permite que estes protocolos definam o valor de comparticipação).
Como é que chegámos aqui? Com um caminho de lenta desorientação generalizada.
Até 2007 as contraordenações aplicavam-se só a estabelecimentos lucrativos. A partir deste ano passaram a aplicar-se também a IPSS. Violou-se a Constituição, não porque existe punição, mas porque essa punição serve para punir o exercício de um direito fundamental: a liberdade de atuação.
A partir desse momento, desse primeiro erro, a razoabilidade desapareceu:
Em 2011, os quadros de pessoal hoje obrigatórios, eram meramente indicadores de qualidade. Eu estranho: não fazem sequer sentido na maior parte dos casos.
Em 2014, não contentes com a mudança de mentalidade operada em 2007, são agravadas as coimas e criados elencos de contraordenações contra a autonomia. Eu estranho: afinal a reforma de 2007 era mesmo para levar a sério.
Entre 2014 e 2019, o acompanhamento converteu-se em fiscalização e começaram as visitas surpresas e a emissão de autos de contraordenação imprevisíveis, tirando partido do momento em que as Instituições voluntariamente apresentavam as suas fragilidades: o apoio técnico. Só cessou porque era tão evidente a revolta que se estava a gerar que o legislador teve de intervir. Nesse período eu próprio, sem querer, estive quase a começar uma greve de silêncio (não dou detalhes porque pode ainda vir a ser útil).
Em 2022, assistimos à fixação, por portaria, dos direitos e deveres a constar dos regulamentos internos de um estabelecimento de apoio social, assumindo já despudoradamente que nem a autonomia contratual se salva.
Em 2023, o Governo surpreende-nos com a previsão de que serão estabelecidas, através de despacho, questões tão fundamentais como as regras de admissão e de gestão de listas de espera de utentes ou a definição de indicadores de qualidade.
A razoabilidade não voltou e, na sua ausência, a autonomia tem-se tornado também cada vez mais distante. E com ela também o respeito pela Constituição, pela Lei e pela ordem natural das coisas.
Pelo meio, coisas mais graves.
Até 2020 achava-se normal acusar dirigentes de IPSS da prática de crimes de participação económica em negócio ou peculato até que finalmente veio o Supremo Tribunal de Justiça explicar o que era óbvio: são entidades privadas, não existe esse crime. Para a Segurança Social o que mudou foi haver um acórdão, não foi o atestado de ignorância que lhe explica que nada tinha mudado: o crime é que nunca tinha existido.
É porque o atestado passou despercebido e a consciência jurídica não se desenvolveu que temos agora as novas imputações de crime de burla tributária à Segurança Social por frequências erradas de utentes. Mais um erro inaceitável que continua a infernizar inocentes cujo único crime foi terem sacrificado a sua vida pessoal pela solidariedade, contribuindo com isso para um país melhor.
Acompanhado deste último crime vem sempre um pedido de indemnização do Instituto que nunca respeita as regras de variação de frequências, tal é a violência. A esperança será que, com alguma sorte, a Instituição pague para se livrar o mais rápido possível do estigma e da ameaça que sempre se sente na posição de arguido, quando a única coisa que se pede é ajudar os outros sem qualquer menção.
E nisto tudo, nunca ninguém se perguntou se é legítimo que o Estado tenha o poder de autorizar o funcionamento destes estabelecimentos. Se as IPSS devem estar sujeitas à confirmação do Estado para começar a prestar o apoio que lhe é reconhecido pela Constituição.
Só nos incomodamos quando, por exemplo, é negada a entrada em funcionamento de um estabelecimento para centenas de utentes porque um quarto de banho tem 15 centímetros a menos (é verdade aconteceu mesmo e é só um entre vários exemplos destes).
Mas onde estamos afinal? Na desorientação completa.
A primeira dissertação que escrevi foi na escola, na disciplina de filosofia, o tema era “a dessacralização do mundo e a perda do sentido”. Não estou com isto a querer dizer que qualquer adolescente teria evitado o erro de 2007 e o reforço do erro em 2014, quero só deixar clara a simplicidade do que se passa: ao desprezar a importância destas Instituições – em linha com o desprezo do significado de tudo em geral – a conclusão será a perda do verdadeiro sentido do sistema que sobre estas se edificou. E esse sentido é evidente: a solidariedade enquanto vetor fundamental do apoio social em Portugal.
Se um inspetor ou um técnico do Instituto está a ler estas linhas e antes de chegar a este ponto reconheceu que se sentia perdido no exercício das suas funções, está aqui a resposta.
Foi o Governo que, por Decreto-Lei, estabeleceu um novo paradigma completamente errado. Cumprindo este paradigma, a Direção-Geral da Segurança Social assumiu a missão de regulamentar, restringir, limitar, impedir, obrigando, por sua vez, o Instituto da Segurança Social, seja no Departamento de Fiscalização, seja nos Centros Distritais, a tornar-se no que nunca foi: aquele que fica do outro lado. Criou-se uma separação sem sentido: quem apoia e quem obstaculiza quem apoia.
É um sistema estranho este: inspetores que seriam mais felizes a fiscalizar situações relevantes, obrigados agora a satisfazer uma missão sem nenhum interesse, detonando disrupção na vida de quem ajuda os outros; técnicos que seriam mais felizes a colaborar com instituições, encarregados agora de dar a cara por exigências em que não acreditam, forçados a aborrecer pessoas que respeitam. Não imagino a frustração nem a desorientação.
Já a Direção-Geral da Segurança Social que não conhece a realidade nem as pessoas como o Instituto da Segurança Social, não se apercebe sequer do efeito contraditório das suas regras. Querem Instituições mais profissionais, mas afastam, com este estado de coisas, quem é profissional. Querem democraticidade e rotação nos cargos dirigentes mas afastam, com as suas regras, candidatos aos cargos. Eu até adivinho a perspetiva que têm da realidade: é preciso limitar mandatos porque de acordo com os dados os dirigentes agarram-se ao poder – errado: não há mais ninguém.
É como atestar um carro a gasolina com gasóleo e ficar muito aborrecido que não ande. O problema é seguramente do carro.
Para onde vamos? Não sei.
O que sei é o que vejo: o que tem impedido um colapso mais acelerado é o facto de, ao contrário de outros setores, estas organizações serem lideradas por pessoas que fazem da sua missão a luta contra a injustiça e que encontram sempre uma força escondida para as combater. E isto é uma enorme injustiça porque só vitimiza os beneficiários do apoio.
Se a esperança, como se costuma dizer, é a última a morrer, a agenda política ou administrativa pode fazer as suas investidas, que a solidariedade permanecerá. Resta saber se o Estado ainda vai a tempo de poder ser parte nela.
Gonçalo Simões de Almeida (KGSA Advogados)